*Ilustração: Org Patrimônio Vivo
A pesquisa sobre eventos ufológicos ao longo da história pode ser muito interessante para o estudo de diferentes aspectos da Ufologia moderna. Descobrimos recentemente o relato de um avistamento ocorrido em 1887, envolvendo personagens que marcaram a história do Brasil. Antonio Conselheiro e os sertanejos seus seguidores são os contatados, e o jornalista Manuel Benício o autor do relato. São muitos os aspectos interessantes desse documento.
Primeiramente, o avistamento é muito anterior à própria Ufologia, e nenhuma testemunha se refere evidentemente à hipótese extraterrestre. O leitor avisado, porém, identifica com bastante clareza as características específicas de um avistamento ufológico. Nosso interesse foi despertado justamente porque a descrição do evento não corresponde às interpretações convocadas para explicá-lo, levando-nos a refletir sobre a questão sempre atual da credibilidade dos relatos de testemunhas. Esse relato é interessantíssimo para essa reflexão, pois Antonio Conselheiro era considerado louco, e fanáticos seus seguidores, o que os teriam desqualificado como testemunhas fiáveis para a Ufologia, se tivessem recorrido à hipótese extraterrestre para explicar o que viram.
Relembremos rapidamente um pouco da história do Peregrino Antonio Vicente Mendes Maciel (1830-1897), que passou para a história como Antonio Conselheiro. O Peregrino levava uma vida de asceta errante, e aconselhava o povo com suas pregações, dispensando acolhimento e mansidão a quem dele se aproximava, além de congregar o povo na construção de igrejas, cemitérios e açudes. O movimento engendrado em torno do Conselheiro acabou tornando-se um sério problema político. Começava a interferir nas relações socioeconômicas tradicionais do sertão. Famílias inteiras abandonavam o trabalho nas propriedades rurais, vendiam o que tinham, largavam tudo para segui-lo. Antonio Conselheiro era adorado e obedecido por seus adeptos. Quatro guerras fratricidas foram necessárias para riscar do mapa a cidade de Belo Monte, fundada por ele em 1893, e que chegou a ser a segunda maior cidade da Bahia na época, depois de Salvador, capital da província.
O relato encontra-se no livro “O Rei dos jagunços, crônica de costumes sertanejos”[1], de autoria do jornalista Manoel Benício e publicado em 1899. O autor foi um dos inúmeros repórteres enviados pelos diferentes jornais do país para cobrir a Guerra de Canudos no sertão baiano. Manoel Benício notabilizou-se por seu compromisso com a verdade da guerra, sendo o primeiro correspondente a denunciar os erros de estratégia e a confusão reinante nas ações do comando da 4ª Expedição, enviada para acabar com a cidade fundada por Antonio Conselheiro. Desagradou assim aos militares, que tentavam tomar pé numa guerra com dificuldades inesperadas, que levou à morte milhares de soldados e sertanejos, expondo o Exército brasileiro a três fracassos sucessivos. O Clube do Exército exigiu sua retirada do cenário da guerra, de onde saiu sob ameaça de morte.
No ensaio introdutório à obra de Manuel Benício, vamos encontrar as principais características do modo de escrever do autor que “não tem por propósito escrever ‘novela sertaneja’, mas uma ‘crônica de costumes sertanejos’, ou seja, relato em que os fatos históricos têm precedência sobre a construção literária. O ‘tom de romance’, acrescenta o autor, só aparece na obra para ‘amenizar a aspereza do assunto e o enfaro de descrições enfadonhas de quem não tem estilo’. Da mesma forma, é possível supor que o emprego da ‘sintaxe e vocábulos adotados pelos nossos sertanejos’ entram em O Rei dos Jagunços não para compor o ‘tom de romance’ e, sim, para garantir ‘maior fidelidade histórica’.»[2] Essas considerações conferem à obra de Benício o estatuto de riquíssimo documento histórico, leitura obrigatória para os estudiosos de Antonio Conselheiro e a Guerra de Canudos. Sua estadia no cenário da guerra permitiu-lhe recolher dados antropológicos sobre a cultura sertaneja, que quis restituir fielmente em seu livro. O impacto psicológico da Guerra de Canudos no Brasil deu ensejo a inúmeras obras de testemunho e documentação, das quais a mais completa é a obra inimitável de Euclides da Cunha[3]. Se Manuel Benício não aspirava fazer grande literatura, quis comunicar fielmente o que era uma descoberta também para o resto do país, o sertão e a cultura sertaneja.
Passamos então a comentar o relato. Antonio Conselheiro, ainda vagando com seus adeptos pelos sertões do nordeste, “descera de Canindé por Quixadá, Riachuelo, Icó, Missão Velha, Milagres e atravessando os Cariris Velhos chegara em Paraíba onde vamos encontra-lo em 1887 rodeado de todo seu prestígio e numeroso bando, no município de Cabaceiras ao pé do Rio Paraíba, arranchado no povoado do Boqueirão.”[4] O Peregrino dirigia-se frequentemente às feiras e vaquejadas, onde houvesse ajuntamento de povo para evangelização: “Fora na fazenda do major Tomé que no ano de 1887, os vaqueiros daquelas bandas conchavaram-se encontrar, vindo de diversos cantos de criação, tangendo magotes de gado de vários donos, para aí dividi-los a quem pertencessem. Todos os dias entravam boiadas tangidas por homens bronzeados na cor e na vestimenta de couro, chapéu, gibão, guardas, e guarda-peito. A fazenda do Tomé era uma planície rodeada de penedos enormes, serras a prumo, só acessíveis aos bodes, medindo uma extensão de seis léguas em quadro.” [5]
Manuel Benício discorre sobre o contexto particular de exaltação religiosa que precedeu a anunciada pregação do Peregrino: “O espírito de todos estava impressionadíssimo, encolhido dentro de uma sensação vaga de susto e contrição. Iam ouvir a voz do santo e afamado missionário praticador de milagres, para quem não havia segredo, nem mistério na alma dos pecadores. Como que um peso estranho acalcava-lhes os ombros, fazendo-os cabisbaixos e submissos.”[6]
O avistamento virá inserir-se nesse ambiente psicológico, e receberá logo uma explicação do autor como sendo um fogo-fátuo: “De súbito, no sopé de um serrote vizinho apareceu uma chama amarela e movediça, que aumentava a olhos vistos, rente com o solo! Nesta ocasião em que a atenção de todos voltava-se amedrontada para a extraordinária aparição, Conselheiro surgiu, sem ser visto por onde entrara na espécie de altar sob a latada. O murmúrio fê-lo erguer os olhos e descobrir o movimento do fogo-fátuo ao pé do morro.
– Que luz é aquela, Jesus!? Onde é? perguntavam cheios de pavor.”[7]
Duas outras explicações foram convocadas para entender a aparição de uma luz, que impressionou e amedrontou as testemunhas: “As opiniões divergiam e as mulheres benziam-se. Os mais ousados, procurando acalmar o pânico, opinavam que eram fachos de caçadores, cavando tatus: outros que eram almas penantes de mulheres amancebadas com padres.
– Sim, concordara a maioria, aquilo é zumbi de mula de padre.
O velho Tomé, então, explicou que de tempos em tempos aparecia no Serrote dos Caboclos aquela luz, à noite. Havia uma furna embaixo, cheia de caveiras inteiriças e um penedo com inscrições e letreiros em língua desconhecida. A explicação tranquilizou um pouco os espíritos, em maioria convictos de que aquele fogo tinha alguma coisa com a vinda do missionário ali: era uma alma penada, talvez que vinha ao mundo pedir orações e penitências para sair do purgatório. Só então deram com o Conselheiro, em pé, de cabeça baixa, como que recebendo uma sagração invisível, ou ouvindo uma voz inaudível aos pecadores, no centro do altar improvisado.”[8]
O comportamento da luz terá o efeito de desacreditar duas das explicações dadas pelas testemunhas: “E nesta hora o fogo-fátuo escalava o penedo a prumo, por onde nem bode subia, galgava-lhe o cimo inacessível e projetara de lá a chama amarela com uma quietude e esmorecimento fantásticos! Houve um oh! uníssono, e a chama desapareceu no espaço como um santelmo que era. O velho fazendeiro, que nunca vira o tal fogo subir ao alto do penedo, estremeceu com esse movimento e ficou pensando no poder sobrenatural do leigo sacerdote. Os que acreditavam que a luz fosse de caçadores, também reconsideraram tal juízo. Por aquele lajedo acima, só lagartixa podia subir! Fora um milagre feito pelo Conselheiro!”
O humor não esteve ausente do avistamento, pois o medo não impediu que a alma de mula de padre recebesse uma estrondosa vaia das testemunhas: “Começaram as rezas, então, por alma do que tinha aparecido em forma de chama no Serrote dos Caboclos. (…) vozes agudas como clarins, roucas como trabucos, esganiçadas, de baixo bovino, bissonantes, de defluxos, tentavam, por um prodígio de vaidade artisticamente carola, sobrepujar uma a outra: e desta vozeria formidolosa rebentara como que uma vaia estonteadora à pobre alma penada do Serrote do Caboclo. ”[9]
Antonio Conselheiro falou poucas vezes de sua missão, e sempre de maneira enigmática e lacônica, por pequenas frases. No texto de Manuel Benício encontramos a única notícia de Antonio Conselheiro explicitando longamente sua missão. A interpretação religiosa da luz cria um ambiente de exaltação que teve sem dúvida efeito sobre o próprio Peregrino. Associado a esse evento, o Conselheiro enuncia longamente sua missão: “- Sim, meus irmãos, obedecei à Igreja e aos Mandamentos de Deus Nosso Senhor, nosso pai e salvador eterno, de quem sou na terra um miserável apóstolo; porque ele me apareceu uma noite e disse: – Antonio, sairás pelos sertões como teu xará de Lisboa, a fazer penitência, pregando o meu Evangelho e as Escrituras Sagradas: sofrerás perseguições dos maus e dos hereges, que retribuirás com benefícios derramados por onde passares: terás, como Pedro, Paulo e todos os meus santos discípulos, o teu povo que te seguirá e de que serás o guia: encher-te-ei de poder na terra e serás tu e serão os teus adeptos, cheios de graça na vida eterna.
– Amém, responderam todos.”[10]
No parágrafo seguinte, o autor dirá que a imaginação continuou funcionando após o avistamento, já que a luz continuou a aparecer e desaparecer. Diz ele: “E como nos olhos da imaginação de todos, a chama lívida e sobrenatural do fogo-fátuo passava, repassava, desaparecia e reaparecia, ninguém pensou em caçar à facho, nesta noite, como era costume, com medo de um mau encontro.”[11] Manuel Benício fala de uma “chama lívida e sobrenatural”[12], traduzindo o ambiente luminoso particular, que caracteriza as manifestações ufológicas.
Fogo-fátuo ou Ufo no Serrote do Caboclo?
O fogo-fátuo, como sabemos, é uma manifestação luminosa ocasionada pela decomposição de matéria orgânica. Os gases metano e fosfina, assim produzidos, entram em combustão no contato com o ar, causando uma pequena explosão e uma luz de tonalidade azul. A luz é produzida rente ao solo e desloca-se horizontalmente em combustão, consumindo-se em poucos segundos. Essa chama pode dar a impressão de perseguir a testemunha se esta correr, deslocando o ar que a puxará na sua direção. Nesse caso, só resta mesmo continuar correndo! Observa-se o fogo-fátuo mais frequentemente em cemitérios e vales dos rios. No sítio arqueológico do Boqueirão, a existência de matéria orgânica em decomposição na furna poderia creditar a explicação do fogo-fátuo.
Porém, a luz descrita por Benício tem em comum com o fogo-fátuo apenas o fato de ter aparecido rente ao solo. No mais, temos uma luz amarela que aumenta de tamanho, e, num movimento vertical, sobe até o alto do penedo, “onde nem bode subia”[13], de onde projeta a chama amarela com uma “quietude e esmorecimento fantásticos”[14], desaparecendo no espaço, “como um santelmo que era”[15], reafirma o autor a interpretação do fogo-fátuo. A luz parece continuar a se manifestar, pois “passava, repassava, desaparecia e reaparecia”[16], causando medo e espanto. O avistamento impediu que caçadores saíssem nessa noite, “com medo de um mau encontro.”[17]
Outros aspectos do relato situam o avistamento dentro do contexto mais geral dos avistamentos ufológicos. A casuística tem demonstrado o interesse dos Ufos pelas manifestações religiosas coletivas, e pelos sítios arqueológicos.
Manifestação religiosa coletiva:
A Ufologia tem registrado o interesse dos Ufos pelas manifestações religiosas coletivas. Estariam testando essa forma de contato? O que aconteceria se fossem confundidos com deuses? Muitos casos de aparições de seres sobrenaturais dentro do registro religioso são interpretados pela Ufologia como eventos ufológicos. O mais célebre deles são as aparições de Fátima, acontecimento sem precedentes, onde milhares de pessoas foram testemunhas de um evento luminoso de grande magnitude.
O avistamento do Boqueirão foi em meio a uma manifestação religiosa coletiva, das mais importantes que viu o sertão do século 19. A presença do Peregrino atraía milhares de pessoas às feiras e vaquejadas para ouvir a palavra do Bom Jesus. O Peregrino era divinizado por seus seguidores, embora ele mesmo não se posicionasse como divindade. O ambiente de respeito e contrição religiosa era o ambiente de suas pregações. A única saudação entre os seguidores de Antonio Conselheiro era “louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”, com a réplica “tão bom Senhor, para sempre seja louvado”. Com essa saudação, os interlocutores firmam um pacto com o discurso religioso. Houve a aparição de uma luz com um comportamento particular no momento em que Antonio Conselheiro chegava para sua pregação noturna. O Ufo lhe rouba a cena. Ninguém o vê chegar, atraídos que estavam pelo fenômeno luminoso inusitado. Estaria o óvni observando essa manifestação religiosa exaltada? Saberiam a catástrofe que se preparava pela certeza delirante de um líder carismático? O relato demonstra que Antonio Conselheiro integrou a luz a seus interesses religiosos, mas que foi também afetado por ela.
Serrote dos Caboclos, Serrote do Caboclo: dois sítios arqueológicos.
O relato apresenta ainda uma característica interessante. O autor provavelmente condensou, na sua “crônica romanceada”, dois eventos ufológicos, dos quais ouviu sem dúvida as narrativas transmitidas oralmente. O relato em estudo parece condensar dois avistamentos ufológicos em um só, ou um contexto de avistamentos na Paraíba, pois se refere ao Serrote dos Caboclos, que se situa no Município de São João do Tigre, enquanto descreve o avistamento no povoado de Boqueirão, situado no Município de Cabaceiras. Então, das duas uma: ou existe um Serrote do Caboclo também em Boqueirão, ou o relato condensa dois avistamentos, ou um contexto de avistamentos, um ocorrido no Serrote dos Caboclos, em São João do Tigre, e outro no Serrote do Caboclo, situado no Boqueirão. Nada conseguimos apurar a esse respeito. A região do avistamento está hoje submersa pelo açude Epitácio Pessoa, ali inaugurado em 1957.
Apuramos que o nome Boqueirão deve-se à passagem do rio Paraíba na serra do Carnoió. A ideia de um açude para abastecimento de água data do século 19. Antonio Conselheiro encontra-se aí com sua gente para construir justamente um açude nas terras do velho Tomé. Desde o século 17, inscrições rupestres foram registradas no local. Uma viagem de exploração realizada por Costa Lira, do Instituto Histórico da Paraíba, em 1905, confirma a informação dada pelo dono da fazenda, de que há “na margem direita do Paraíba, há três léguas ao oeste do povoado de Boqueirão, um monumento rochoso com uma grande quantidade de inscrições. Uma légua abaixo deste local, na margem esquerda do rio, viu diversos caracteres gravados num lajedo e na fralda da Serra do Carnoió, banhada pelo Paraíba, identificou caracteres gravados no interior de uma furna. Estas são apenas algumas das notificações registrando inscrições rupestres no vale de Carnoió, antes deste tornar-se um manancial artificial, que provam que ali existe um grande número de vestígios, testemunhos do passado ameríndio e paleoídio encoberto pelas águas e toneladas de material de enxurros, sem nunca ter sido devidamente registrado.”[18] A fazenda do velho Tomé situava-se sem dúvida nesse local e aí foi avistada a luz.
Temos então a comprovação da afinidade arqueológica do Serrote do Caboclo, no Boqueirão, e lugar do avistamento no relato, com o Serrote dos Caboclos, no Município de São João do Tigre, conhecido sítio arqueológico paraibano.
Antonio Conselheiro e sua gente penetraram na Paraíba pelo extremo sudeste do Ceará, e é razoável pensar que tenha passado pelo Serrote dos Caboclos na sua caminhada até o povoado de Boqueirão. Teria ocorrido já ali um avistamento, num sítio arqueológico tal como descrito pelo Velho Tomé? Ou teria o penedo do Boqueirão, nas terras do velho, também o nome de Serrote, só que do Caboclo, no singular, por ter o mesmo valor arqueológico? Manuel Benício deixa certa ambiguidade no texto, que nos permite pensar que condensou dois avistamentos ufológicos num único relato, ou um contexto de avistamentos associados a vestígios arqueológicos. Como veremos, muitos indícios sugerem que o penedo do avistamento do Boqueirão chamava-se à época Serrote do Caboclo, dentro das terras do velho Tomé, e que provavelmente tinha esse nome pela afinidade de avistamento de luzes associadas a vestígios arqueológicos, como no Serrote dos Caboclos.
Mas Manuel Benício acentua, não apenas a afinidade arqueológica, mas também a afinidade de histórias nos dois lugares. O Serrote de São João do Tigre é conhecido por uma caverna que encerra os restos mortais de índios que pereceram no local, tentando proteger-se de colonos, além de inscrições rupestres em idioma desconhecido. No local de nosso relato, no Boqueirão, o velho Tomé assimila o evento luminoso à mesma história de furnas cheias de caveiras e inscrições em idioma desconhecido. O velho Tomé diz que existe o mesmo lugar em suas terras: uma furna com restos mortais humanos e inscrições, sob um penhasco. Talvez ele tivesse tido outros contatos, por isso não procura dar uma explicação, mas justamente tenta entender um evento que parece bastante estranho à sua compreensão. Vai fazer uma associação entre o avistamento de luzes no céu e morros escarpados com paredões escritos em idioma desconhecido, e furnas contendo restos mortais humanos. Mais adiante no livro, onze dias depois do avistamento, Manuel Benício refere-se ainda ao evento luminoso, animando a fala de Raimundinho Doutor, protagonista da história: “Contara ele que fora ao Serrote do Caboclo, entrara dentro de uma furna escura onde viu para mais de mil caveiras. Trouxe uma para fora, a fim de fita-la à luz do sol e reconheceu que morrera o dono dela, em consequência de um enorme talho que rachara a meio a cabeça.
– Tive vontade de trazê-la para mostrar a vocês… mas … ora … !
– Deus nos livre disto! benzeram-se as mulheres.”[19]
O evento luminoso vem como que assinalar a existência de sítios arqueológicos. Esse comportamento dos Ufos é amplamente estudado pela Ufologia. Hoje sabemos que um dos seus grandes interesses são os vestígios de antigas civilizações antediluvianas. Estamos assistindo em todo o planeta o desvendar de um passado civilizado do homem de que não suspeitávamos. Os achados arqueológicos recentes nos empurram para um enorme recuo no tempo. Existiram em todo o planeta civilizações que foram antediluvianas. As provas materiais pululam atualmente com as novas descobertas arqueológicas em todo o mundo. Trata-se de uma expansão da consciência sem precedentes na história humana. É como se uma grande parte do conteúdo cultural inconsciente se desvendasse. A Paraíba é certamente parte dessa história muito antiga do homem, com inúmeros vestígios de culturas completamente desconhecidas.
A questão das testemunhas:
O ufólogo Reinaldo Stabolito[20] propõe uma abordagem dos relatos de testemunhas que se adequa bem ao estudo do relato que nos interessa aqui. Lembra que o grande esforço dos pesquisadores para validar e classificar a casuística ufológica passa pelo estudo das testemunhas. A testemunha considerada válida para a Ufologia é aquela que, após verificação segundo certos protocolos, não apresenta qualquer distúrbio mental, não estaria movida por interesse financeiro, ou de alcançar fama. Demonstra, porém, que esses três quesitos não são suficientes para garantir a credibilidade de um relato, pois a testemunha humana tem órgãos sensoriais específicos, que talvez não sejam totalmente apropriados para apreender a realidade extraterrestre, forçosamente bem diferente da que vivemos. Segundo a perspectiva das testemunhas, Stabolito conceitualisa os eventos ufológicos como avistamento percebido (a observação), que resulta do sistema sensorial da testemunha, de seu estado físico e emocional; avistamento interiorizado (a interpretação), onde geralmente a testemunha recorre às suas referências culturais; e o avistamento descrito (descrição), escrito pela própria testemunha ou por terceiros. Essas três facetas envolvendo a testemunha levam Stabolito a dizer que o relato não é registro fiel do evento ufológico. Aplicando seus conceitos à leitura da posição das testemunhas no relato de Manuel Benício, vamos, porém, chegar a uma conclusão diferente.
Do nosso ponto de vista, podemos examinar a questão por outro ângulo: a partir do momento em que são os ETs que têm a iniciativa do contato, e se eles são tão mais adiantados do que nós, devem conhecer o funcionamento da psiché humana. Devem saber como se manifestar para que possamos, com nossos sentidos, apreender o que nos comunicam, pois é graças ao relato de testemunhas que o objeto de estudo da Ufologia vem se constituindo ao longo dos anos. Constituindo-se justamente pela repetição de padrões de comportamento dos ETs, que são múltiplos, mas permitem uma sedimentação de conhecimentos sobre eles. Sabemos hoje, por exemplo, que os mais envolvidos em casos de abdução são os greys, sobre os quais já temos milhares de informações obtidas pelos relatos de testemunhas.
O avistamento percebido (a observação) e o avistamento descrito (descrição):
No caso de nosso relato histórico, a percepção do avistamento não é do autor da descrição. Manuel Benício não foi testemunha ocular do relato. Escreve a partir de uma situação de avistamento que lhe foi contada, provavelmente por várias testemunhas, já que incorpora à sua descrição diferentes interpretações. Esse é, aliás, o caso de grande parte dos relatos de testemunhas em Ufologia. Os relatos são geralmente escritos por jornalistas, psiquiatras e outros profissionais que se ocupam das testemunhas, descrevendo o que ouviram delas.
O autor dedica mais de três paginas ao avistamento que situa em 1887, dez anos antes de sua chegada como repórter de guerra no sertão da Bahia. Essas três paginas demonstram a forte impressão causada pelo avistamento entre os sertanejos, a ponto de o autor julgá-lo digno de ser incorporado à sua “crônica de costumes sertanejos”.
Avistamento interiorizado (interpretação):
Grande parte do interesse do relato de Manuel Benício são as interpretações convocadas para explicar o evento luminoso. Temos em primeiro lugar a explicação do autor da descrição, que não testemunhou o avistamento. As testemunhas oculares dividem-se em três explicações diferentes: uma racional, outra religiosa, e uma terceira posição testemunhal, a do velho Tomé, que avança uma explicação, que é antes uma interrogação sobre um avistamento que escapa à sua compreensão.
A interpretação de Manuel Benício:
Manuel Benício, como vimos, não foi testemunha ocular do avistamento. Coloca-se, porém, como o portador de uma explicação científica para um acontecimento que não presenciou. Esta é a percepção que teve do evento ufológico que lhe foi contado: um acontecimento que ficou muito tempo gravado na memória dos sertanejos, que ele, jornalista, homem culto do Rio de Janeiro, sabia pela descrição que ouvia que era um fogo-fátuo. Estava tão certo de sua explicação científica, que descreveu com muita fidelidade o que lhe foi contado, sem se preocupar com a concordância dos fatos: para ele, era um fogo-fátuo. Trata-se de um caso típico de fé cega na ciência, ideal do século 19.
As certezas científicas de Manuel Benício não interferem, porém, na descrição que faz do que lhe foi contado. O autor não procura distorcer o acontecimento para adequá-lo à sua explicação. A distorção é introduzida no próprio relato justamente como um problema de percepção atribuído pelo autor às testemunhas oculares, consideradas como sertanejos crentes e ignorantes: a luz passava e repassava, aparecia e desaparecia, “como um santelmo que era”, mas “nos olhos da imaginação”. Definitivamente, o comportamento da luz não correspondia a um fogo-fátuo, mas corresponde ao comportamento de um Ufo, tal como vem sendo descrito há décadas através do relato de testemunhas.
A interpretação racional:
Quando a luz apareceu, causando espanto e medo nos sertanejos reunidos, uma explicação racional foi logo avançada: tratava-se de fachos de caçadores noturnos cavando tatus. O comportamento particular da luz desacreditou rapidamente essa explicação ditada pelo bom senso.
A interpretação religiosa:
Essa parece ter sido de longe a explicação mais evocada para entender o avistamento luminoso. O interessante estudo de Antonio Faleiro[21] sobre as interpretações folclóricas relativas às aparições de ufos dirige nossa atenção para as almas penadas ou a Mãe do Ouro, ambas presentes no relato de Manoel Benício. A crença em almas penadas é, porém, muito diferente da crença na Mãe do Ouro. As almas penadas não pertencem ao nosso mundo material. No folclore popular, elas manifestam-se eventualmente e de várias maneiras, dentre as quais como bolas de fogo no céu noturno. Já a Mãe do Ouro vem localizar muito concretamente jazidas minerais, indicar tesouros enterrados, deixando sempre nas populações do interior uma interrogação sobre acontecimentos que têm características próprias.
A maioria das testemunhas era adepta ou simpatizante do Peregrino. Seus seguidores eram profundamente religiosos, chegando à beira do fanatismo. A explicação religiosa, que não necessita ser verossímil, prevaleceu: a luz era uma alma de mula de padre.
A interpretação do Velho Tomé:
A explicação do dono da fazenda, o Velho Tomé, é mais uma interrogação, uma tentativa de entender um avistamento, que talvez não tenha sido o primeiro para ele. O Velho Tomé estabelece uma identidade de avistamento luminoso em lugares de penedos a prumo e furnas com vestígios humanos e escritos em língua desconhecida.
A interpretação de Antonio Conselheiro:
A posição de Antonio Conselheiro enquanto testemunha é muito interessante. Sua fé religiosa e a de seus seguidores não deixam dúvidas sobre a interpretação a ser adotada para o fato: a luz era uma alma penada de mulher amancebada com padre, pedindo penitência e oração. Surpreendemos aqui, entretanto, certa ambiguidade do Peregrino. Vimos acima como tomará uma atitude de contato espiritual com a luz e como foi afetado pelo ocorrido. Nessa noite do avistamento da luz amarela – que aumentava de tamanho, subindo penedo acima, “onde nem bode subia”, luz que passava e repassava, aparecia e desaparecia – Antonio Conselheiro falará explicitamente de sua missão religiosa. O avistamento ufológico é traduzido como trazendo uma realidade luminosa às crenças religiosas sobre as almas que não encontram descanso por causa dos seus pecados.
Entretanto, o Peregrino não era dado a crendices, como muito bem atestam os ensinamentos contidos em seus manuscritos, e a lembrança de um sobrevivente da guerra. Efetivamente, os manuscritos de Antonio Conselheiro nos revelam uma cultura religiosa consistente, sempre dentro da mais estrita ortodoxia católica. O Peregrino era um letrado, “não era homem para acreditar em bruxarias”.[22]
A explicitação de sua missão é proferida em associação com o avistamento ufológico, indicando que o evento afetou-o profundamente. Esse relato é o único documento onde Antonio Conselheiro explicita sua missão. Referiu-se a ela poucas vezes e de maneira enigmática e lacônica.
Tudo leva a pensar que o Conselheiro interpretou a luz como sendo a Mãe do Ouro. Assinalamos então, em 1887, o contexto folclórico estudado pelo pioneiro Antonio Faleiro: “Pelo Brasil afora existem histórias que nos falam de bolas de fogo que vagam à noite pelas regiões rurais. Na maioria dos Estados brasileiros essa aparição é denominada Mãe do Ouro.”[23] Faleiro nos informa que as testemunhas que entrevistou “contavam-nos que sempre viam uma bola de fogo voando de uma serra a outra e enterrando-se chão adentro. Diziam ser ‘o ouro mudando de lugar’. Outras vezes, ficava imóvel nos topos de serras e até sobrevoava povoados. Quantas pessoas chegaram a cavar determinados lugares em busca do ouro escondido pela Mãe do Ouro e, algumas, até chegaram a encontrar algo.”[24]
A crença na Mãe do Ouro é bastante diferente da crença em alma do outro mundo, embora ambas as crenças sejam convocadas para explicar avistamentos de luzes no céu. A Mãe do Ouro designa uma realidade que é relacionada pelas testemunhas a alguma coisa bem material e concreta desse mundo de Deus, que é o ouro.
A atitude do Peregrino encaixa-se perfeitamente na tradição levantada por Faleiro e leva-nos a pensar que a crença na Mãe do Ouro, criação da mitologia ufológica popular, inspirava seu sentimento religioso: “Há uma interessante tradição baseada no temor das reações da Mãe do Ouro e, segundo os mais velhos, não se deve apontar o dedo na sua direção e, sim, fazer um movimento com a mão dizendo: ‘vai, Deus te guie’.”[25] Essa nossa interpretação sugere que o Conselheiro recuperou o avistamento para confortar sua influência espiritual. Seu gesto é conforme à tradição relativa ao medo das reações da Mãe do Ouro, mas dirige-se à luz como se fosse uma alma de amancebado, como pensava a maioria dos sertanejos ali reunidos, estado que combateu decisivamente entre seus adeptos, aliás: “Tudo isso foi rápido, e, dominados ainda pela assustadora impressão, foram abalados pela voz profética do chefe, que acompanhando com o braço, a subir, vagarosamente, uma coisa invisível, falara:
– Some-te, alma de amancebado; não busques perturbar os filhos do Senhor nas orações que serão hoje em desconto de teus pecados. ”[26]
Contatos de 1° grau, testemunhas e testemunhos:
Podemos classificar nosso relato como um Contato de 1° grau, de modo que, sendo este artigo um estudo de caso, não queremos generalizar nossas conclusões para os testemunhos de outros graus de contato.
Os contatados não têm nenhuma prerrogativa de provocar um evento ufológico. São os extraterrestres que se dão a conhecer, quando querem e da maneira que querem. Se estivermos assim em posição de observados, e se os extraterrestres são muito mais adiantados do que nós, devemos supor que conheçam a psique humana, que seu modo de contato deve levar em conta nossas diferenças sensoriais, físicas e emocionais, embora demonstrem muitas vezes, em casos de abdução, um desconhecimento da existência da dor que infringem aos abduzidos, por exemplo.
Segundo Stabolito, a testemunha é sujeita a tantas limitações para restituir fielmente a experiência ufológica, que esta deve ser considerada como muito diferente do evento real. O que achamos interessante no relato de Manuel Benício, onde encontramos a interação de interpretações diversas, é que nenhuma interpretação interferiu na descrição do avistamento, nem mesmo a certeza científica do autor. Podemos dizer que não houve interferência das interpretações na descrição do autor, porquê podemos identificar com clareza um avistamento ufológico, tal como a Ufologia o identifica hoje. Assim, pensamos que a avaliação da credibilidade de um evento ufológico não deve ser conferida pelo controle das variáveis comportamentais da testemunha, mas pela credibilidade do testemunho.
O que o avistamento do Boqueirão nos demonstra é que o evento ufológico impõe-se à testemunha, apesar das diferenças de percepção e de explicação a que recorrem para explicar o avistamento. O evento ufológico impõe-se à testemunha, e transcende suas particularidades subjetivas. Apesar da subjetividade das testemunhas, um conhecimento sobre a realidade ufológica vem se depositando ao longo dos milhares de relatos de testemunhas, definindo uma experiência que é propriamente ufológica e não de outra natureza. A coerência do testemunho com outros testemunhos decidiria da validade da experiência ufológica, se seu relato pode ou não corresponder ao que se repete ao longo dos relatos.
Antonio Conselheiro foi um místico, mas também um homem com grande senso prático e uma certeza delirante. Foi um grande organizador social. Conseguiu promover uma prosperidade nunca vista nos sertões nordestinos, dando provas de capacidade de congregar pessoas e realizar obras. E não era dado a crendices. O estudo da obra de Antonio Conselheiro nos permite afirmar que ele provavelmente não acreditava em alma do outro mundo. Ele certamente viu a luz como uma manifestação divina, mas não como uma alma do outro mundo, que na escala de prestígio dos seres inexplicados é uma pedinte em baixo nível de evolução. A atitude de comunicação e submissão que toma ao ver a luz demonstra que vivenciou o avistamento como uma manifestação divina, e não como alma penada: “Só então deram com o Conselheiro, em pé, de cabeça baixa, como que recebendo uma sagração invisível, ou ouvindo uma voz inaudível aos pecadores, no centro do altar improvisado.”[27] O Peregrino recupera assim seu público, transformando a luz num evento religioso. Não contraria o povo, mas seu gesto dirige-se à Mãe do Ouro. Dias mais tarde, ainda vemos o Peregrino afetado pelo avistamento da luz. Certa noite, disse ao terminar sua prédica: “- Sim, rezai e fazei penitências, enquanto irei pedir a Deus graça e misericórdia. E assim falando, desceu do improvisado trono, atravessou o pátio atufado de devotos maravilhados e contritos e todos viram-no desaparecer na sombra da noite para as bandas do serrote do Caboclo.”[28] Achamos que foi investigar o local. O Conselheiro não era dado a crendices.
Urca, 5 de outubro de 2013.
[1] Manoel Benício. O Rei dos jagunços. In: Azevedo, Silvia Maria. O Rei dos Jagunços de Manuel Benício, entre ficção e história. São Paulo, Edusp, 2003.
[2] Azevedo, Silvia Maria. O Rei dos Jagunços de Manuel Benício, estudo introdutório, p. 34. In: Azevedo, Silvia Maria. O Rei dos Jagunços de Manuel Benício, entre ficção e história. São Paulo, Edusp, 2003.
[3] Os Sertões, publicado em 1902.
[4] Manoel Benício. O Rei dos jagunços. In: Azevedo, Silvia Maria. O Rei dos Jagunços de Manuel Bénício, entre ficção e história. São Paulo, Edusp, 2003, p. 88.
[5] Idem, pp. 94,95.
[6] Idem, p. 99.
[7] Idem, p. 99.
[8] Manoela Benício. O Rei dos jagunços. In: In: Azevedo, Silvia Maria. O Rei dos Jagunços de Manuel Benício, entre ficção e história. São Paulo, Edusp, 2003, pp. 99, 100.
[9] Idem, pp. 100, 101.
[10] Manoel Benício. O Rei dos jagunços. In: Azevedo, Silvia Maria. O Rei dos Jagunços de Manuel Benício, entre ficção e história. São Paulo, Edusp, 2003, pp. 103, 104.
[11] Idem, p. 104.
[12] Idem, p. 104.
[13] Idem, p. 100.
[14] Idem, p. 100.
[15] Manoel Benício. O Rei dos jagunços. In: Azevedo, Silvia Maria. O Rei dos Jagunços de Manuel Benício, entre ficção e história. São Paulo, Edusp, 2003, p. 100.
[16] Idem, p. 104
[17] Idem, p. 104.
[18] http://arqueologiadaparaiba.blogspot.com.br/2009/01/pr-histria-submersa-no-aude-de-boqueiro.html
[19] Benício, Manuel. O Rei dos jagunços, pp. 118, 119.
[20] Revista Ufo 57.
[21] Faleiro, Antonio. Ufos nos Brasil, misteriosos e milenares. Campo Grande, CPBDV, 2002.
[22] Macedo, Nertan. Memorial de Vilanova. Brasília, INL, 1983, p. 68.
[23] Faleiro, A. Ufos no Brasil, misteriosos e milenares. Campo Grande, CBPDV, 2002, p. 42
[24] Idem, p. 42.
[25] Idem, p. 46.
[26] Manuel Benício, p. 100.
[27] Idem, p. 100.
[28] Idem, p. 115.
Um avistamento marca o Sertão no século XIX
Por Lalla Barreto|Revista UFO, Edição 209 – 27 de Feb de 2014